Medidas
Quando o próprio corpo não serve
Informações foram obtidas quando os jovens tinham entre 22 e 23 anos, por meio de questionários aplicados no acompanhamento de saúde do grupo entre 2015 e 2016, com 3,6 mil participantes
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Compulsão alimentar. Distúrbio mental caracterizado pelo consumo de grande quantidade de alimentos com perda de controle sobre o ato de comer. Anorexia. Falha em manter o peso corporal adequado, distúrbio da imagem corporal e restrição alimentar. Bulimia. Episódios frequentes de compulsão alimentar acompanhados de comportamentos compensatórios inadequados, como o vômito auto provocado.
Essas doenças atormentam há 25 anos a vida de Graziele* (nome fictício, não identificada para que sua identidade seja preservada). Aos 14 anos começou a ser perturbada na escola devido a sua aparência. “Eu era gordinha, sofria bullying no colégio. Na minha adolescência pesava 86 quilos”, conta.
Depois, perturbada pelo próprio pai: não podia comer na sua frente, demandava que emagrecesse. “Eu tinha medo de comer com ele”, relata.
Foi o gatilho que a empurrou para o uso de remédios e dietas radicais em busca do corpo perfeito. “Eu tomava laxante, diurético. Cheguei a passar duas semanas só comendo bolacha água e sal e refrigerante diet. Não era uma alimentação saudável”, reconhece. Depois, passou a provocar vômitos. E assim foi adicionando, aos poucos, mais transtornos alimentares à lista.
Ainda jovem, chegou a trabalhar como modelo. Viu, sentiu e aplicou em si as cobranças externas: do pai, do ramo, da mídia, do padrão estético imposto. Estar no peso ideal não era suficiente - precisava ter uma certa imagem. A imagem das modelos globais, das personalidades da mídia.
O corpo sentiu as consequências. Aos 19 anos, desenvolveu hipertireoidismo (quando o sangue tem quantidades excessivas de hormônio da tireoide). Um dos sintomas era o emagrecimento. Para tratar a doença, tinha que tomar um remédio por dia. Tomava três. Chegou ao extremo e teve que fazer procedimentos para retirada da tireoide.
Hoje em dia, ainda convive com a compulsão alimentar e a bulimia. “A minha relação com a comida nunca foi normal. Eu como por sentimento e vomito depois”, conta. Graziele segue em tratamento com psiquiatra e nutricionista, que planeja reeducação alimentar na clínica biolight. Outra distração tem sido um curso de fotografia que iniciou, conta. E assim continua.
Graziele não está sozinha. Olhar-se no espelho e não gostar do corpo que vê é um pesadelo que atinge muitos. Dados sobre percepção corporal dos participantes da Coorte de Nascimentos de 1993 em Pelotas, pesquisa do Centro de Epidemiologia da UFPel, revelam que sete em cada dez jovens pelotenses (72,9%), aos 22 anos, estavam insatisfeitos com o próprio corpo. A insatisfação corporal é maior entre as mulheres do que entre os homens: 77,6% do público feminino gostaria de ter outra forma física, diferente daquela que possui. Para o grupo masculino, o percentual fica em 69,7%.
A busca pelo emagrecimento também foi avaliada pela pesquisa: mais da metade dos entrevistados (51,4%) gostaria de emagrecer. Novamente as mulheres são a ampla maioria: 61,9%, 39,3% dos homens. As informações foram obtidas quando os jovens tinham entre 22 e 23 anos, por meio de questionários aplicados no acompanhamento de saúde do grupo entre 2015 e 2016, com 3,6 mil participantes.
A vontade de perder peso, para a maioria dos entrevistados, não está relacionada com o sobrepeso ou a obesidade de fato. A maioria - 56% tanto para homens como para mulheres - apresentou peso adequado para a altura, calculado pelo Índice de Massa Corporal (IMC). Mesmo entre os que estão com peso apropriado, a satisfação corporal é baixa, com percentuais de 36,1% para homens e de 34,1% para mulheres.
Karina Linhares, proprietária e nutricionista de uma clínica de reeducação alimentar em Pelotas, atribui os índices demonstrados na pesquisa ao modelo físico imposto pela sociedade através da mídia e, especialmente nos últimos anos, com o uso das redes sociais. “É só abrir as redes sociais para ver o ‘terrorismo nutricional’ que existe”, afirma, citando publicações que encorajem uma alimentação sem glúten, sem laticínios, sem carboidratos. “Isso leva ao aumento desses transtornos porque as pessoas ficam ansiosas em relação aos alimentos”, diz, destacando que a situação se agrava durante a puberdade. “A adolescência já é uma fase confusa. Se adicionarmos a questão da estética, complica ainda mais. As mídias fazem com que a pessoa pense que se não for sarada, não será bem aceita na sociedade.”
Em tempos de redes sociais, em que o que é publicado em mídias como Instagram, Twitter e Facebook nem sempre representa a realidade do dia a dia, emergem, pontualmente, produções de artistas, coletivos e movimentos que vão contra a corrente: propõe um olhar menos estereotipado em relação ao corpo humano.
Alguns fatos podem ser tomados como exemplos: ano passado, a modelo americana Ashley Graham foi a primeira plus size a ser capa da Sports Illustrated, uma das principais revistas esportivas dos Estados Unidos. Mesmo com curvas e algumas celulites aqui e ali, a top também entrou para ranking das 10 modelos mais bem pagas do mundo - a primeira vez que uma modelo considerada plus size entrou na lista. Também em 2017, Alexandre Herchcovitch, um dos maiores estilistas do Brasil, assinou sua primeira linha de roupas especializada em mulheres gordas.
Valor pela fotografia
Em uma visão mais local, uma fotógrafa pelotense tem sido aliada de quem busca a quebra de padrões estéticos. A partir de seus ensaios de arte e moda, Thamires Seus, que iniciou a profissão há quatro anos, tem como mantra fazer a única coisa que está a seu alcance para mudar, mesmo que pouco, a forma como as modelos se enxergam: valorizar, através da fotografia, a natureza real da aparência de quem está por trás das lentes. “Vivo pensando em como diferentes corpos podem estar inseridos em coisas como a fotografia de moda, que ainda é muito padrão”, fala. Um dos ensaios traz a modelo plus size pelotense Arantxa Von Appen, expoente na cidade em questões de combate a gordofobia e inclusão de outros tipos de beleza.
Tão complexa é a situação de quem vive com distúrbios alimentares que as causas para desenvolvimento de anorexia, bulimia e outros transtornos é bastante diversa: os fatores podem ser individuais, como traços de personalidade, história de transtornos mentais na família, alterações biológicas e experiências traumáticas, assim como a herança genética da família e fatores socioculturais. Para a psicóloga Josiane Puchalski Sousa, a mania mundial de culto exacerbado ao corpo e a busca por um corpo ‘padrão’ é um desses principais fatores. “É possível dizer que os sintomas de transtornos alimentares se desenvolvem como uma espécie de defesa, uma forma que a pessoa encontra para lutar contra algo que a assusta ou causa infelicidade. A superação dos transtornos passa pela recuperação da autoestima, das relações familiares, do convívio em sociedade e principalmente da auto aceitação, objetivos que podem ser alcançados ao longo do processo de psicoterapia”, explica.
Tratar o problema não é nem um pouco simples. Várias abordagens podem ser adotadas, mas o mais importante é que o paciente possa ter uma relação de confiança e sinta-se a vontade com o profissional, pontua Josiane. “Quando se trata de transtornos alimentares, o mais indicado envolve o tratamento psicoterápico, médico e nutricional. Especialmente no caso de crianças e adolescentes, em que é fundamental a intervenção familiar”, diz.
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